02 maio 2010

TEXTO / CONTEXTO

   Texto e contexto são conceitos que ocupam lugar privilegiado na obra de Freire. Para o autor, “o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações” (1992, p. 36). Processos educativos, que se pretendem críticos, agregam texto e contexto. Vivem radicalmente o ato cognoscente quando convocam os sujeitos – educandos/educadores e educadores/educandos - não apenas a se darem conta de um objeto de conhecimento “no contexto real onde se dá”, mas a experimentarem uma inserção sobre ele, o que os leva a criação-ação-transformação.

   Esses processos educativos também agregam contextos concretos e teóricos. Situações existenciais, experiências da vida diária e práticas realizadas em âmbitos diversos da cotidianidade configuram contextos reais concretos, que são culturais e históricos. Fazem, então, dessas situações experiências e práticas, objeto de conhecimento, na medida em que se voltam sobre elas para “ad-mirá-las”.
   Com isso fundam contextos teóricos desde os quais se realizam reflexões críticas sobre a constituição e os condicionamentos dos contextos reais concretos; sobre os fazeres, saberes, pensares, relações e ações vigentes em seus âmbitos e sobre as teorias que orientam as práticas que configuram e se configuram nesses contextos reais concretos. O objeto “ad-mirado” ou em processo de “ad-miração” faz-se, então, mediatizador da “ad-miração” dos sujeitos que o expressam e sobre ele refletem. Um processo reflexivo mais complexo se estabelece neste contexto teórico: a “re-ad-miração”, operação teórico-conceitual. Essa operação leva o pensamento a mover-se, dos contextos reais concretos - tidos como partes de um contexto sócio-histórico mais amplo a este último, em um movimento de “abstração” sobre o objeto de conhecimento, como diz Freire (2001, p. 44). Esse movimento não subtrai, contudo, os objetos de conhecimento de seus contextos reais concretos. Pelo contrário, passa a compreendê-los desde as totalidades que os contêm e que os significam e os transformam.
   O caminho do conhecimento identificado por Freire, em processos educativos críticos, não se esgota em um momento, em um tempo, em um sujeito. Quanto mais os sujeitos cognoscentes adentram seu objeto de conhecimento, mais conscientes se tornam de que há mais por conhecer. A problematização/reflexão que permite a inteligibilidade do objeto, por sujeitos em relação, funda a comunicabilidade. Forja espaços dialógicos que aproximam educador e educando, uma vez que, no ato cognoscitivo, estarão compartilhando presença no contexto que sustenta o objeto de conhecimento e relação com os signos linguísticos necessários para expressá-lo. É desde esses imbricamentos que Freire aponta a associação entre pensamento, linguagem, realidade.



Esses movimentos perceptivos e/ou reflexivos projetam, como insinua o autor, textos, cuja complexidade é compatível com a profundidade e amplitude que os primeiros atingem. Por sua vez, em processos educativos, um texto pode apresentar-se como elemento de comunicação do percebido e refletido, como também sob a forma de objeto de ad-miração. Contudo, sua historicidade - que em ambos os casos está associada à do ato cognoscente que torna possível a sua criação - os mantém “abertos”. Convoca educadores e educados, leitores e escritores, a um “processo de reinvenção contínua do texto no contexto cultural e histórico” que lhes é próprio. “Um texto excelente é um texto que pode transcender seu lugar e seu tempo” (2001, p. 73).
   As obras de Freire em que os termos texto e contexto aparecem de forma mais explícita são as que analisam os atos de ler e estudar (associados a processos alfabetizadores ou a outros níveis de educação), as mesmas que insistem em evidenciar que a capacidade de ler os textos, compreender a realidade e transformá-la, que é concomitante com a construção crítico/reflexiva dos sujeitos, exige distanciamento do vivido para constituí-lo como objeto de/em “ad-miração”. É o que mostra Freire no primeiro texto de “A importância do ato de ler”, quando passa a rever o próprio processo de alfabetização e a contar como os textos, as palavras, as letras se encarnavam nas coisas, na natureza e nas relações possibilitadas pelo contexto da sua infância, juventude e mocidade. E como, na medida em que sobre este contexto adentrava, para dele mais saber, via-se apaziguado dos seus temores de então. Mostra também, em textos produzidos individualmente ou em diálogo com outros educadores, como este adentramento crítico cria condições para que os sujeitos (oprimidos), ao divisarem a situação de opressão em que vivem, engagem em uma prática libertadora, construída em torno da esperança da realização do “sonho possível”, sonho coletivo, cujo critério de possibilidade ou impossibilidade é um critério histórico-social.
   O ato de percorrer a obra de Freire para a realização da presente síntese tornou possível pontuar sua aproximação teórico-epistemológica, quanto à temática em questão, especialmente de pensadores como Kosik (concretude, totalidade), Gramsci (ação contra-hegemônica), Marx (transformação da realidade) e Mounier (aspiração transcendente, produção de uma nova cultura, produção de um novo sujeito).

Referências
FREIRE, Ana Maria Araújo (Org.) Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Ed. UNESP, 2001.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade: e outros escritos. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 5. ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1983.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem gosta de ensinar. São Paulo: Olho D’Água. 1997.
STRECK, Danilo (Org.) Paulo Freire: ética, utopia e educação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.


FONTE: Dicionário Paulo Freire

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